A CARTOMANTE NÃO MUDA O FUTURO
Também gosto de astrologia, cartomancia, ciências ocultas. Mas ainda não vi nada disso mudar meu futuro. Parece que só a gente mesmo é que pode fazer o dia de amanhã.
Mas antes a pergunta que se impõe é esta: que é mesmo que você quer? Saber a resposta é indispensável.
Talvez você descubra que há duas ou três coisas que você põe acima de tudo no mundo. Saber disso é um passo importante que você terá dado. E o que precisaria você fazer para conseguir o que quer? Algum sacrifício, isso é quase certo.
E é quase certo que, se você quer mesmo o que quer, o sacrifício vale a pena. Tudo isso tem que se passar entre você - e você mesma. A cartomante não ajuda.
Mas se você pegou o hábito de pessimismo, é ruim. Atrapalha muito, atrapalha de fato. O dia de amanhã fica logo com ar de chuva que não vem. E seu raciocínio de pessimista funciona mais ou menos assim: se não houve nuvem de chuva no céu, você aí mesmo é que se preocupa - pois que coisa estranha é essa, amanhã vai chover e hoje não tem nuvem no céu? Mau sinal, mau sinal.
Estou brincando, é claro, mas o que quero dizer é que o pessimista está sempre arranjando um jeito de acomodar as coisas com o seu pessimismo.
O ideal é ser como uma senhora que conheço. Ela me disse - e não dizia apenas por dizer, pensava mesmo assim, sentia mesmo assim - que quem já sofreu realmente não sofre mais por bobagens.
Bem sei que certas dores ficam doendo, a pessoa se torna toda “nevrálgica”, e o que nem devia incomodar passa a perturbar. Mas é aí que entra uma conversa entra você - e você mesma. Ou entre você e uma pessoa que entenda das coisas do mundo. A conversa terá como finalidade descobrir o que é que ainda está doendo. Conversa para pôr os pontos nos iii. Nem sempre é fácil. Às vezes, a gente nem sabe onde estão os iii, às vezes não sabe que pontos colocar em que i.
Mas também nisso a cartomante não resolve. É pena, você mesma terá que tomar conta do assunto. Com minha ajuda, se quiser.
ACORDAR-SE
Sonhar é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que do chão não se passa, também é verdade que “quanto mais alto se está maior é a queda”.
Não é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir. Mas subir em balões? Voar assim é, muitas vezes, melancólico.
Há vários modos de alçar-se em balões. Um deles consiste em cair em devaneios que levam longe, e mal. E para voltar? A aterrissagem é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
Outra variedade de subir em balões é a de não enfrentar fatos, e mentir sem cessar - e sem mesmo sentir. É bom mentir? Você nunca poderá enganar totalmente a si mesma. E - como a força mínima dos balões - a mentira só fará você se evadir alguns centímetros.
Por que então não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido. Mas cada degrau alcançado ainda é a boa terra da realidade. Em cada degrau alcançado se pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder terreno ou bater com a cabeça no chão. “Também da escada se pode cair”, dirá você, que gosta mais de balões. Bom, cair pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por isso deixaram de andar. Mas levante-se, então; também as crianças sabem disso.
ERROS DO PASSADO
Para quem - por desespero ou por gosto - vive aludindo aos erros do passado, eis uma frasezinha de um homem chamado Fénelon: “Pode-se corrigir o passado com o futuro”.
Talvez, aliás, o único modo de corrigir o passado. Pois uma verdade óbvia é esta: enquanto você lamenta o passado, o presente lhe foge das mãos.
E não há tanto do que se recriminar e lamentar: não há outro modo de viver senão o de errar e corrigir-se, e depois errar de novo e corrigir de novo. O que não chega a ser trágico: trata-se do jogo da vida, e todos nós jogamos o mesmo jogo.
Agora, o que é mesmo uma pena é uma pessoa sentar-se num canto da sala (figuradamente), a lamentar, lamentar, lamentar. Quem está no jogo tem que aceitar as regras do jogo.
Você há de dizer: “Eu não pedi para entrar no jogo, não pedi para nascer”. Pois esse argumento é uma mistura de neurastenia, vontade de despistar, má vontade e chicana.
Tenha cuidado com uma coisa: quando lamentar-se começa ser consolo, é tempo de prestar atenção.
DIÁLOGO
- Posso te dizer tudo?
- Pode.
- Você compreenderia?
- Compreenderia. Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e, por ser um campo virgem, está livre de preconceitos. Tudo o que não seu é a minha parte maior e melhor, é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que é a minha verdade.
AUTOCRÍTICA NO ENTANTO BENÉVOLA
Tem que ser benévola, porque se fosse aguda, isso talvez me fizesse nunca mais escrever. E eu quero escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que se voltar a escrever, será de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, por exemplo, não importa no caso se boas ou más: mas falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria e a alegria chega a ser dolorosa - pois esse ponto é o aguilhão da vida.
E tantas vezes não consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto dizemos: “Ah!” Às vezes esse encontro comigo mesmo se consegue através do encontro de um ser com outro ser.
Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente que quero o máximo - e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve, haver um modo em mim de chegar a isso.
Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver, evoluindo. Uma vez senti, no entanto, que seria conseguido através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza de alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como “Deus escreve direito por linhas tortas”, através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.
SÓ PARA MULHERES
Uma vez me ofereceram fazer uma crônica de comentários sobre acontecimentos, só que essa crônica seria feita para mulheres e a estas dirigida. Terminou dando em nada a proposta, felizmente. Digo felizmente porque desconfio de que a coluna ia descambar para assuntos estritamente fúteis-femininos, na extensão em que feminino é geralmente tomado pelos homens e mesmo pelas próprias mulheres: como se mulher fizesse parte de uma comunidade fechada, à parte, e de certo modo segregada.
Mas minha desconfiança de que descambaríamos para o estritamente feminino vinha lembrar-me do dia em que uma moça veio me entrevistar sobre literatura e, juro que não sei como, terminamos conversando sobre a melhor marca de delineador líquido para maquilagem dos olhos. E parece que a culpa foi minha. Maquilagem dos olhos também é importante, mas eu não pretendia invadir as seções especializadas, por melhor que seja conversar sobre modas e sobre a nossa preciosa beleza fugaz.
Voltando ao jornalismo feminino. Quando eu trabalhava em redações de jornais, era repórter e redatora, fazia de tudo, menos a parte de polícia e parte de notícias sociais. Depois, não podendo na ocasião dar horário integral, fiz página feminina para dois vespertinos. Num, não havia assinatura. No outro, eu escrevia mas quem assinava era Ilke Soares, a vedete das mais simpáticas e bonitas. Seu nome atraía leitoras que queriam saber sua opinião sobre modas, culinária, beleza etc.
Tudo isso veio à tona agora porque recebi a carta de uma leitora bastante jovem pedindo-me conselhos gerais para quando for convidada a sair para almoçar ou jantar com um rapaz.
Li duas vezes o meu nome para me certificar de que a carta era para mim mesma dirigida, e não para as ótimas redatoras de assuntos femininos do caderno B. Era para mim mesma. Por que fui escolhida? Nunca saberei. A carta, vinda da capital paulista, era assinada por extenso. Mas tratarei a missivista pelas iniciais J.F.E. E aí vão meus modestos conselhos:
Mesmo que o rapaz não seja um modelo de elegância, gostaria de sair com uma jovem que esteja bem-vestida. Mas detestará o encabulamento de sair com uma moça enfeitada como uma boneca, ou sofisticada demais ou fatal. O principal a cuidar são os detalhes. Acessórios descuidados darão a você mesma e a ele uma sensação de relaxamento, e moça relaxada não é companhia lisonjeira.
Arrume-se direito antes de sair. Mas - e isto é importante - depois procure esquecer a própria aparência. Você já fez o que pôde - agora deixe o barco correr, use a segurança natural de quem sabe que se cuidou. Não fique a toda hora consultando o espelhinho de bolsa, ajeitando os cabelos, empoando-se ou corrigindo o batom. Lembre-se: você não saiu para ser linda, você saiu para gostar de ter saído? não saiu para se mostrar: saiu para conversar. Se o rapaz convidou você para sair com ele é porque gostou de seu jeito, do seu modo de ser, de sua aparência. Que esta ideia lhe baste para ter uma segurança simples em si mesma. Porque senão, que é que acontece? Você vai achar que deve ir para o primeiro encontro procurando ser melhor do que é. E o que faz para isso? Erroneamente muda seu penteado para alguma coisa terrivelmente sofisticada, e toma emprestada uma personalidade fabulosa, imagina você, mas diferente da sua. E o rapaz, em vez de encantado, fica supreendido: marcou encontro com uma, e veio outra. De modo que vá ao primeiro encontro tão bem quanto puder mas seja a mesma que você era - será muito mais confortável para ambos.
Se é rapaz de classe média, seja gentil para com a carteira dele, sem no entanto mostrar clara ou indiretamente que está preocupada com que ele pode gastar. Se vocês forem, por exemplo, almoçar no restaurante, deixe que ele próprio determine qual. E escolhe no cardápio algo meio-termo: nem o mais caro nem o mais barato. E, por favor, coma o que pediu. Não pense que é delicadeza feminina ficar apenas ciscando no prato. É muito sem graça para o rapaz gastar com prazer e ver você rejeitar o que seu dinheiro compra. Está certo, J.F.?
O MILAGRE DAS FOLHAS
Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que são de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzí¬-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como
o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.
DE UM CADERNO DE NOTAS
..... eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. ..... mas já que se há de escrever que ao menos não se esmaguem as entrelinhas.
..... o pior de mentir é que cria uma falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa, e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas o pior da mentira é que a mentira é "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a tentar pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)
Também gosto de astrologia, cartomancia, ciências ocultas. Mas ainda não vi nada disso mudar meu futuro. Parece que só a gente mesmo é que pode fazer o dia de amanhã.
Mas antes a pergunta que se impõe é esta: que é mesmo que você quer? Saber a resposta é indispensável.
Talvez você descubra que há duas ou três coisas que você põe acima de tudo no mundo. Saber disso é um passo importante que você terá dado. E o que precisaria você fazer para conseguir o que quer? Algum sacrifício, isso é quase certo.
E é quase certo que, se você quer mesmo o que quer, o sacrifício vale a pena. Tudo isso tem que se passar entre você - e você mesma. A cartomante não ajuda.
Mas se você pegou o hábito de pessimismo, é ruim. Atrapalha muito, atrapalha de fato. O dia de amanhã fica logo com ar de chuva que não vem. E seu raciocínio de pessimista funciona mais ou menos assim: se não houve nuvem de chuva no céu, você aí mesmo é que se preocupa - pois que coisa estranha é essa, amanhã vai chover e hoje não tem nuvem no céu? Mau sinal, mau sinal.
Estou brincando, é claro, mas o que quero dizer é que o pessimista está sempre arranjando um jeito de acomodar as coisas com o seu pessimismo.
O ideal é ser como uma senhora que conheço. Ela me disse - e não dizia apenas por dizer, pensava mesmo assim, sentia mesmo assim - que quem já sofreu realmente não sofre mais por bobagens.
Bem sei que certas dores ficam doendo, a pessoa se torna toda “nevrálgica”, e o que nem devia incomodar passa a perturbar. Mas é aí que entra uma conversa entra você - e você mesma. Ou entre você e uma pessoa que entenda das coisas do mundo. A conversa terá como finalidade descobrir o que é que ainda está doendo. Conversa para pôr os pontos nos iii. Nem sempre é fácil. Às vezes, a gente nem sabe onde estão os iii, às vezes não sabe que pontos colocar em que i.
Mas também nisso a cartomante não resolve. É pena, você mesma terá que tomar conta do assunto. Com minha ajuda, se quiser.
ACORDAR-SE
Sonhar é bom, é como voar suspensa por balões. O problema é que um simples bodoque de criança, e os balões estouram. Se é verdade que do chão não se passa, também é verdade que “quanto mais alto se está maior é a queda”.
Não é por ser grande a queda que se evitará o grande gosto de subir. Mas subir em balões? Voar assim é, muitas vezes, melancólico.
Há vários modos de alçar-se em balões. Um deles consiste em cair em devaneios que levam longe, e mal. E para voltar? A aterrissagem é difícil. Quando se dorme fora de hora, o despertar é meio ruim.
Outra variedade de subir em balões é a de não enfrentar fatos, e mentir sem cessar - e sem mesmo sentir. É bom mentir? Você nunca poderá enganar totalmente a si mesma. E - como a força mínima dos balões - a mentira só fará você se evadir alguns centímetros.
Por que então não tentar subir pelas escadas? É menos bonito, menos rápido. Mas cada degrau alcançado ainda é a boa terra da realidade. Em cada degrau alcançado se pode, inclusive, parar um pouco para descansar, sem por isso perder terreno ou bater com a cabeça no chão. “Também da escada se pode cair”, dirá você, que gosta mais de balões. Bom, cair pode-se cair, todos sabem disso, sobretudo as crianças que nem por isso deixaram de andar. Mas levante-se, então; também as crianças sabem disso.
ERROS DO PASSADO
Para quem - por desespero ou por gosto - vive aludindo aos erros do passado, eis uma frasezinha de um homem chamado Fénelon: “Pode-se corrigir o passado com o futuro”.
Talvez, aliás, o único modo de corrigir o passado. Pois uma verdade óbvia é esta: enquanto você lamenta o passado, o presente lhe foge das mãos.
E não há tanto do que se recriminar e lamentar: não há outro modo de viver senão o de errar e corrigir-se, e depois errar de novo e corrigir de novo. O que não chega a ser trágico: trata-se do jogo da vida, e todos nós jogamos o mesmo jogo.
Agora, o que é mesmo uma pena é uma pessoa sentar-se num canto da sala (figuradamente), a lamentar, lamentar, lamentar. Quem está no jogo tem que aceitar as regras do jogo.
Você há de dizer: “Eu não pedi para entrar no jogo, não pedi para nascer”. Pois esse argumento é uma mistura de neurastenia, vontade de despistar, má vontade e chicana.
Tenha cuidado com uma coisa: quando lamentar-se começa ser consolo, é tempo de prestar atenção.
DIÁLOGO
- Posso te dizer tudo?
- Pode.
- Você compreenderia?
- Compreenderia. Eu sei de muito pouco. Mas tenho a meu favor tudo o que não sei e, por ser um campo virgem, está livre de preconceitos. Tudo o que não seu é a minha parte maior e melhor, é a minha largueza. É com ela que eu compreenderia tudo. Tudo o que não sei é que é a minha verdade.
AUTOCRÍTICA NO ENTANTO BENÉVOLA
Tem que ser benévola, porque se fosse aguda, isso talvez me fizesse nunca mais escrever. E eu quero escrever, algum dia talvez. Embora sentindo que se voltar a escrever, será de um modo diferente do meu antigo: diferente em quê? Não me interessa. Minha autocrítica a certas coisas que escrevo, por exemplo, não importa no caso se boas ou más: mas falta a elas chegar àquele ponto em que a dor se mistura à profunda alegria e a alegria chega a ser dolorosa - pois esse ponto é o aguilhão da vida.
E tantas vezes não consegui o encontro máximo de um ser consigo mesmo, quando com espanto dizemos: “Ah!” Às vezes esse encontro comigo mesmo se consegue através do encontro de um ser com outro ser.
Não, eu não teria vergonha de dizer tão claramente que quero o máximo - e o máximo deve ser atingido e dito com a matemática perfeição da música ouvida e transposta para o profundo arrebatamento que sentimos. Não transposta, pois é a mesma coisa. Deve, eu sei que deve, haver um modo em mim de chegar a isso.
Às vezes sinto que esse modo eu o conseguiria através simplesmente de meu modo de ver, evoluindo. Uma vez senti, no entanto, que seria conseguido através da misericórdia. Não da misericórdia transformada em gentileza de alma. Mas da profunda misericórdia transformada em ação, mesmo que seja a ação das palavras. E assim como “Deus escreve direito por linhas tortas”, através de nossos erros correria o grande amor que seria a misericórdia.
SÓ PARA MULHERES
Uma vez me ofereceram fazer uma crônica de comentários sobre acontecimentos, só que essa crônica seria feita para mulheres e a estas dirigida. Terminou dando em nada a proposta, felizmente. Digo felizmente porque desconfio de que a coluna ia descambar para assuntos estritamente fúteis-femininos, na extensão em que feminino é geralmente tomado pelos homens e mesmo pelas próprias mulheres: como se mulher fizesse parte de uma comunidade fechada, à parte, e de certo modo segregada.
Mas minha desconfiança de que descambaríamos para o estritamente feminino vinha lembrar-me do dia em que uma moça veio me entrevistar sobre literatura e, juro que não sei como, terminamos conversando sobre a melhor marca de delineador líquido para maquilagem dos olhos. E parece que a culpa foi minha. Maquilagem dos olhos também é importante, mas eu não pretendia invadir as seções especializadas, por melhor que seja conversar sobre modas e sobre a nossa preciosa beleza fugaz.
Voltando ao jornalismo feminino. Quando eu trabalhava em redações de jornais, era repórter e redatora, fazia de tudo, menos a parte de polícia e parte de notícias sociais. Depois, não podendo na ocasião dar horário integral, fiz página feminina para dois vespertinos. Num, não havia assinatura. No outro, eu escrevia mas quem assinava era Ilke Soares, a vedete das mais simpáticas e bonitas. Seu nome atraía leitoras que queriam saber sua opinião sobre modas, culinária, beleza etc.
Tudo isso veio à tona agora porque recebi a carta de uma leitora bastante jovem pedindo-me conselhos gerais para quando for convidada a sair para almoçar ou jantar com um rapaz.
Li duas vezes o meu nome para me certificar de que a carta era para mim mesma dirigida, e não para as ótimas redatoras de assuntos femininos do caderno B. Era para mim mesma. Por que fui escolhida? Nunca saberei. A carta, vinda da capital paulista, era assinada por extenso. Mas tratarei a missivista pelas iniciais J.F.E. E aí vão meus modestos conselhos:
Mesmo que o rapaz não seja um modelo de elegância, gostaria de sair com uma jovem que esteja bem-vestida. Mas detestará o encabulamento de sair com uma moça enfeitada como uma boneca, ou sofisticada demais ou fatal. O principal a cuidar são os detalhes. Acessórios descuidados darão a você mesma e a ele uma sensação de relaxamento, e moça relaxada não é companhia lisonjeira.
Arrume-se direito antes de sair. Mas - e isto é importante - depois procure esquecer a própria aparência. Você já fez o que pôde - agora deixe o barco correr, use a segurança natural de quem sabe que se cuidou. Não fique a toda hora consultando o espelhinho de bolsa, ajeitando os cabelos, empoando-se ou corrigindo o batom. Lembre-se: você não saiu para ser linda, você saiu para gostar de ter saído? não saiu para se mostrar: saiu para conversar. Se o rapaz convidou você para sair com ele é porque gostou de seu jeito, do seu modo de ser, de sua aparência. Que esta ideia lhe baste para ter uma segurança simples em si mesma. Porque senão, que é que acontece? Você vai achar que deve ir para o primeiro encontro procurando ser melhor do que é. E o que faz para isso? Erroneamente muda seu penteado para alguma coisa terrivelmente sofisticada, e toma emprestada uma personalidade fabulosa, imagina você, mas diferente da sua. E o rapaz, em vez de encantado, fica supreendido: marcou encontro com uma, e veio outra. De modo que vá ao primeiro encontro tão bem quanto puder mas seja a mesma que você era - será muito mais confortável para ambos.
Se é rapaz de classe média, seja gentil para com a carteira dele, sem no entanto mostrar clara ou indiretamente que está preocupada com que ele pode gastar. Se vocês forem, por exemplo, almoçar no restaurante, deixe que ele próprio determine qual. E escolhe no cardápio algo meio-termo: nem o mais caro nem o mais barato. E, por favor, coma o que pediu. Não pense que é delicadeza feminina ficar apenas ciscando no prato. É muito sem graça para o rapaz gastar com prazer e ver você rejeitar o que seu dinheiro compra. Está certo, J.F.?
O MILAGRE DAS FOLHAS
Não, nunca me acontecem milagres. Ouço falar, e às vezes isso me basta como esperança. Mas também me revolta: por que não a mim? Por que são de ouvir falar? Pois já cheguei a ouvir conversas assim, sobre milagres: “Avisou-me que, ao ser dita determinada palavra, um objeto de estimação se quebraria.” Meus objetos se quebram banalmente e pelas mãos das empregadas. Até que fui obrigada a chegar à conclusão de que sou daqueles que rolam pedras durante séculos, e não daqueles para os quais os seixos já vêm prontos, polidos e brancos. Bem que tenho visões fugitivas antes de adormecer – seria milagre? Mas já me foi tranquilamente explicado que isso até nome tem: cidetismo, capacidade de projetar no campo alucinatório as imagens inconscientes.
Milagre, não. Mas as coincidências. Vivo de coincidências, vivo de linhas que incidem uma na outra e se cruzam e no cruzamento formam um leve e instantâneo ponto, tão leve e instantâneo que mais é feito de pudor e segredo: mal eu falasse nele, já estaria falando em nada.
Mas tenho um milagre, sim. O milagre das folhas. Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhares de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzí¬-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos cabelos e guardo-a na bolsa, como
o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo.
Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.
DE UM CADERNO DE NOTAS
..... eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. ..... mas já que se há de escrever que ao menos não se esmaguem as entrelinhas.
..... o pior de mentir é que cria uma falsa verdade. (Não, não é tão óbvio como parece, não é truísmo; sei que estou dizendo uma coisa, e que apenas não sei dizê-la do modo certo, aliás o que me irrita é que tudo tem de ser "do modo certo", imposição muito limitadora.) O que é mesmo que eu estava tentando pensar? Talvez isso: se a mentira fosse apenas a negação da verdade, então este seria um dos modos (negativos) de dizer a verdade. Mas o pior da mentira é que a mentira é "criadora". (Não há dúvida: pensar me irrita, pois antes de começar a tentar pensar eu sabia muito bem o que eu sabia.)